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Mostra Argentina Rebelde

A Caixa Cultural Rio de Janeiro apresenta, até dia 30 de agosto, a mostra Argentina Rebelde. São 17 filmes – longas, médias e curtas – que traçam um panorama do cinema argentino, com obras realizadas entre 1942 e 2013. Neste artigo, confira a primeira parte de nossas impressões sobre os filmes do festival.

Publicado originalmente no Multiplot. Rio de Janeiro, 2015.

Jogue uma moeda (Tire Dié, 1960) e Os Inundados (Los Inundados, 1962),
de Fernando Birri

 

É ao mesmo tempo inusitado e perfeitamente compreensível que os dois filmes tenham surgido em um espaço tão curto de tempo e pelas mãos do mesmo realizador. Há elementos constantes, boa parte deles muito particulares das ideias indissociáveis de cinema e política de Birri, como o reconhecimento da função revolucionária do documental, inclusive no segundo filme, que adota traços do gênero em prol de uma narrativa que se aproxima de uma espécie de neorrealismo argentino.

 

No primeiro, o cineasta parte de um relato estatístico da província de Santa Fé, em um apanhado de números e dados oficiais que serve mais à manutenção da desigualdade do que a qualquer outra coisa. A câmera de Jogue uma moeda inicialmente observa de cima, com o olhar de elites e colonizadores, a comunidade pobre que margeia uma linha de trem para, em seguida, descer ao chão e narrar as histórias das crianças que pedem dinheiro aos passageiros e de suas famílias, que lutam pela subsistência. Trata-se de um movimento de humanização genuíno e, para aqueles sujeitos, inédito, sobretudo quando o filme retorna às casas miseráveis após uma breve incursão nos vagões, como se revelasse a postura abominável dos privilegiados — ouve-se algo como “Eles vivem assim porque não trabalham” — e dela quisesse fugir. Parece fácil encontrar pontos em comum com um Brasil hoje ainda desigual, mais pelo retrato de quem anda de trem do que dos que seguem à margem dele.

 

No segundo filme, a lógica se repete, e as figuras do título se deslocam do campo para a cidade e de volta ao campo buscando sobreviver, à mercê da própria sorte e esquecidas pela política. A abordagem é cômica, mas não perde a postura crítica e socialmente consciente e abre margem para questionamentos sobre quem carrega a responsabilidade por aquela situação. “A culpa é nossa, do destino?”, pergunta uma personagem. “Não, do governo”, responde outro. Em comum, as obras possuem ainda a habilidade de Birri para preencher quadros, os quais frequentemente desnudam uma realidade desoladora, apresentando lado a lado estes humanos desafortunados e os mais variados animais.

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A Casa do Anjo (La Casa del Ángel, 1957), de Leopoldo Torre Nilsson

A associação mais imediata relaciona o filme de Torre Nilsson a Orson Welles, pela forma de posicionar a câmera, a construção arrojada em torno de um imenso flashback que amarra abertura e desfecho e outras tantas coincidências e não-coincidências. Contudo, há muito mais a encontrar aqui, leituras várias que partem principalmente da condição de precursor de uma geração tão importante do cinema argentino, da qual ele próprio fez parte, na década seguinte. A variedade temática abordada e a frontalidade com que trata aspectos tão controversos da vida social e política surpreendem ainda hoje. Não fariam o sentido que fazem, porém, se fossem gratuitas, desvinculadas de uma compreensão bastante particular daquele contexto.

 

Felizmente, o filme se ergue sobre uma noção muito bem determinada da família como repositório moral, que só no desenrolar, diálogo a diálogo, confronto a confronto, acaba desconstruída. A mãe religiosa de Ana, a jovem protagonista, ganha contrapontos em todas as frentes — o chofer que fala em aborto, as filhas que se descobrem sexualmente e questionam os ensinamentos bíblicos e mesmo o marido que, mais retrógrado que progressista, insiste em práticas pouco condizentes com essa moral cristã. É essencialmente familiar também o debate entre os congressistas, que sai do seio político, burguês e aristocrático, das questões públicas e partidárias, em direção a acusações pessoais que, no limite, atingem a honra.

 

Em todos os casos, a descoberta de novos rumos se dá através do caminhar — as andanças da personagem central pelos bairros afastados, os vinte passos contados de seu par num duelo fatal — e se manifesta por olhares expressivos, filmados de perto. O legado do filme para latino-americanos se nota em retrospectiva de maneira mais evidente, mas são de imediato aparentes suas virtudes no que tange a questões substancialmente argentinas. É cinema com pátria, sem sombra de dúvida.

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Tempo de Vingança (Tiempo de Revancha, 1981), de Adolfo Aristarain

O cineasta traça um paralelo inteligente e bem arquitetado entre o inusitado plano de Pedro Bengoa de fingir-se de mudo para conseguir uma indenização e seu passado como militante. Disposto a arriscar a própria vida para conservar uma fraude, anos após abandonar suas atividades como sindicalista, ele encontra uma realidade semelhante à da resistência aos horrores da ditadura. Manter o silêncio e aguentar toda forma de pressão, aspectos outrora fundamentais para sua sobrevivência, tornam a ser base de sua existência. O thriller possui sequências emblemáticas, como aquela em que o rapaz segura o grito de dor ao queimar o próprio braço com um cigarro, envoltas em um esquema bastante próprio do gênero. No limite, o protagonista se torna prisioneiro quase literal da própria convicção, e momentos como sua explosão de alívio debaixo do chuveiro não passam de um enganoso senso de libertação, o que talvez justifique até mesmo o sucesso do filme ao se esquivar da censura.

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A Terra dos Patriarcas (Tierra de los Padres, 2011), de Nicolás Prividera

É curioso como o filme — uma série de leituras de textos sobre a história argentina, tendo o Cemitério da Recoleta como personagem e cenário — nasce e quase se perde na montagem. Nasce porque as ideias se concatenam de maneira um tanto clara. São séculos de acontecimentos narrados por figuras que se portam como fantasmas do passado de opressão e violência que ainda assombram, vagam por aí mesmo que seus corpos sejam trancados noite após noite.

 

A ideia funciona melhor nos trechos em que Prividera explicita que aquilo ainda é real, como na sequência de abertura, por meio de menções às perseguições da ditadura, conflitos raciais, embates civis e enfrentamentos militares — uma espectadora sentada a algumas cadeiras de mim exclamava baixinho “Minha nossa senhora!” a cada citação, sorrindo apenas quando um grupo de idosos em tela cantava em frente ao túmulo de Perón, em homenagem ao líder. Não soa exatamente como um resgate histórico, posto que os argentinos lidam com a formação de seu país cotidianamente, a mencionada sequência sobre o peronismo sendo sintoma disto.

 

A derrocada do filme, porém, se dá na mesma ilha de edição que o construiu. O ritmo lento, excessivamente pausado, um pouco entediante, que insere aqui e ali planos diversos da arquitetura do cemitério, não parece ser algo voltado para a reflexão entre memórias, mas um sinal de falsas polidez e formalidade. A sensação acaba contornada, ainda assim, pelo momento em que se cita Joaquín Ianuzzi: “Eu sou pela usura e tenho tempo”. Havendo disposição, os trechos sobre militarismo de El Crimen de la Guerra e as lembranças de Evita e Aramburu, por razões distintas, valem como recompensa.

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A Hora dos Fornos – Parte 1: Neocolonialismo e Violência
(La Hora de los Hornos – Parte 1: Neocolonialismo y Violencia, 1968),
de Fernando Solanas e Octavio Getino

O exemplar que melhor incorpora a ideia de rebeldia política da seleção. O ordenamento de imagens pré-existentes revela as inúmeras contradições de um sistema falido, ignoradas quando vistas isoladamente. Esse horror é denunciado não apenas por meio de títulos em caixa alta que clamam por libertação, como também através de sequências em que nem mesmo a elegância da ópera dessa América branca e rica é capaz de sufocar o poder da imagem de uma criança mestiça desnutrida.

 

O jogo de contrastes se faz muito claramente nesse choque que não oferece acessos nem dá margem a relativizações, mas que se coloca ainda a serviço de uma ideia de perpetuação bastante agressiva — o ontem e o hoje, lembrados em recorrência, revelam a continuação de uma miséria que não mais permite negociações. Trata-se do procedimento de montagem em sua essência, como se Vertov tivesse desembarcado em Buenos Aires e se deparado com um outro vocabulário para tratar de novos e velhos problemas.

 

A mediação de Solanas e Getino, carregada de convicção e impressão de significados, não ameniza a violência do neocolonialismo e de seus braços — a fome, o não acesso à terra, a doença, a dominação cultural e política —, e o que tem início com uma nota que trata Cuba como “o primeiro território livre da América” desemboca em um dos momentos mais fortes da história do cinema no continente: um longo plano de Che, morto.

Invasão (Invasión, 1969), de Hugo Santiago

Diz a história que Jorge Luis Borges definiu o filme, cujo roteiro escreveu ao lado de Adolfo Bioy Casares, da seguinte maneira em uma folha de papel: “a lenda de uma cidade, imaginária ou real, sitiada por fortes inimigos e defendida por uns poucos homens, que tampouco são heróis; lutaram até o fim, sem suspeitar que sua batalha era infinita”. Não parece existir entendimento melhor do que é Invasão, em parte porque Santiago investe fortemente nessas mesmas ideias de ambiguidade e infinitude, muito embora tome partido no momento derradeiro.

 

Os dois grupos que se opõe são compostos por homens já velhos, distantes de qualquer idealismo juvenil. Vestem-se com semelhante sobriedade, deslocados temporal e geograficamente, e lutam por causas desconhecidas em uma Aquileia fantasmagórica que é, a um só tempo, toda e nenhuma cidade. Por que atacam? De que se protegem? O que querem evitar? A sombra, fotografada com muita elegância por Ricardo Aranovich, engole partes da tela como se decidisse escondê-las, em uma lógica similar à do próprio texto. No limite, o surreal se torna muito palpável graças a menções mais claras à capital argentina, em especial quando confirma ter consciência plena de sua origem, fazendo tudo convergir para La Bombonera antes de retomar o ciclo sem fim daquela luta.

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A Patagônia Rebelde (La Patagonia Rebelde, 1974), de Héctor Oliveira

A volta ao passado argentino, partindo do contexto entre ditaduras em direção às disputas rurais do início do século 20, permite que Olivera dedique maior atenção a questões usualmente marginalizadas em prol da ação ou idealizadas e simplificadas em favor do discurso. Falo, aqui, de discussões complexas sobre regimes políticos: a obra se debruça sobre análises nas esferas social, econômica e política, aponta inconsistências entre teoria e práxis e critica as divisões da própria organização sindical, mas se mostra extremamente respeitoso quando trata de suas lutas e ambições. A obsessão perversa do coronel Zavala, determinado a eliminar as sociedades obreras por meio de procedimentos não vistos “nem na guerra europeia”, parece tão real quanto a perseguição aos realizadores do filme na época de sua produção e lançamento, marcada por visitas nada cordiais do exército, censura e exílios forçados.

O Dependente (El Dependiente, 1969), de Leonardo Favio

Um filme sobre prisões. Fernández, o protagonista, é enclausurado a cada plano, pela proximidade da câmera que dedica longos períodos a encarar sua estranheza ou pela forma como Favio o enquadra seguidamente, usando os espaços limitados — as paredes, grades e árvores — como margens insuperáveis na tela. É também sufocante como todos os personagens são prisioneiros de determinações sociais.

 

No pequeno povoado de poucos cenários — a loja de ferragens, a casa dos Plasini —, as convenções produzem graves desvios, que impedem uma de sair do próprio quintal, outro de viver uma vida digna. Há um olhar de espanto, materializado nos ataques da matriarca e nas aparições de seu gato, mas também de compaixão por figuras aprisionadas em uma rotina insuportável, de trabalho durante o dia e interações pessoais assustadoras à noite. É nos breves momentos de libertação, porém, que O Dependente encontra sua maior força. Ainda assim, a realidade é inescapável, e mesmo a morte é seguida por constrição social, de um povoado que se aglomera ali mesmo, na prisão onde tudo começou.

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Pude Ver Um Puma (Pude Ver Un Puma, 2011), de Eduardo Williams

Formalmente, o mais rebelde do grupo. Existe toda uma desconexão no campo da aparência, mas ela coexiste com um fiapo narrativo que liga as coisas, os personagens e suas histórias. Trata-se fundamentalmente de um curta-metragem de sensações, que aposta na fluidez e confia plenamente no poder de suas imagens, mesmo quando essas são apenas sugeridas — um garoto fora de campo fala sobre uma tatuagem que o espectador não chega a ver, um acidente ocorre sem que seja observado por completo, o próprio animal do título indica a selvageria constante e por aí vai. Williams torna cotidiano o que é estranho e faz de seu trabalho gigante em impacto pela forma como a câmera vagueia pelos espaços e pelo modo como o som engole tudo quando a tela escurece no momento derradeiro.

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VFS

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