
“A Árvore da Vida”
Belo Horizonte, 2011.
“A Árvore da Vida” é o instrumento utilizado por Terrence Malick para falar diretamente com Deus. Somos feitos espectadores privilegiados do contato entre um genial criador – o cineasta – e o que se acredita ser o criador de todas as coisas, em um diálogo de 138 minutos permeado mais por questionamentos e acusações do que reverências. E, embora o contato pareça ser realizado com ares megalomaníacos e excessivamente pretensiosos, a ênfase do cineasta – e também seu maior mérito – é nos fazer perceber a insignificância de praticamente tudo o que conhecemos diante da imensidão, partindo da aproximação inicial à tempestuosa convivência de uma família do interior dos Estados Unidos para, em seguida, reconstruir o planeta e todos os seres que nela habitam diante de nossos olhos.
Formada pela união entre o sr. e a sra. O’Brien (Brad Pitt e Jessica Chastain), pais de três crianças, a família O’Brien (a família, sua família, a espécie humana) tem seus desequilíbrios apresentados desde o início: a mãe é a Graça, o raciocínio, ao passo que o pai se assemelha a um animal liberto na Natureza, tosco e rude. A instabilidade é acentuada pelo crescimento de Jack, o filho mais velho, conduzido até a vida adulta sob o impacto da morte de seu irmão imediatamente mais novo, R.L., aos dezenove anos.
Sem estipular ordem cronológica, A árvore da vida nos introduz ao convívio dos O’Brien no momento da descoberta do falecimento do garoto, em algum ponto dos anos 60, e, valendo-se do habitual requinte de seu diretor, desde o princípio traça seus pais como figuras distintas. A mãe recebe a notícia por telegrama, em casa, e a trilha sonora de Alexandre Desplat (um compositor cada vez mais seguro) é interrompida num rompante quando ela termina a leitura de tão pesaroso comunicado, dando vazão completa aos sentimentos da personagem. Não surpreende que o pai seja informado do fato pelo telefone, sufocado em meio a dezenas de barulhentos aviões, no trabalho – elemento que, em um momento posterior, se revelará sua maior frustração e base de sua preocupação com os filhos.
No instante seguinte, Malick avança em torno de quatro décadas até focar, sempre de baixo para cima, indicando a pequenez humana, os imensos prédios metálicos dos tempos atuais. Jack (aqui, interpretado por Sean Penn) surge envelhecido, queixando-se dos rumos tomados pela humanidade e das prisões de vidro e aço que ele próprio, arquiteto, ajudou a erguer. Quando o personagem questiona as razões para sua insatisfação presente, recorrendo aos infortúnios de sua vida jovem, somos transportados diretamente à origem. Mas não a de sua estremecida relação com o pai. A da vida.

A evolução do planeta (e a evolução da vida)
Nas sequências que agora ocupam a tela, realizadas sob a coordenação de Douglas Trumbull (de 2001 – Uma Odisseia no Espaço e Blade Runner – O Caçador de Androides) e montadas com excelência por uma equipe liderada por Mark Yoshikawa (e que inclui Daniel Rezende), o micro e o macro – seres microscópicos e planetas, plantas e montanhas – são postos em contraponto, ainda que sejam partes da mesma unidade. O que se ouve ao fundo é a voz de Jack, perguntando onde estava o suposto criador de tudo o que é vivo quando o irmão faleceu e, assim, questionando sua alegada vontade/capacidade de fazer o bem. Este traço, parte fundamental da narrativa, é capaz até mesmo de subverter a tradicional relação vertical entre divindade e humanidade: se, na frase de abertura do longa, o Senhor indaga a Jó “Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da Terra?”; aqui, é Jack quem coloca Deus contra a parede — “Onde estava você?”.
Um esboço de resposta (ou, ainda, outra dúvida) surge em uma das mais bem construídas sequências de toda a produção, em que um dinossauro herbívoro, incapacitado de se mover, tem sua vida poupada por outro, carnívoro. O que se vê é uma das primeiras manifestações de consciência, compaixão e Graça da vida na Terra? Ou o animal apenas não se sentia com fome naquele momento, mantendo em seu lugar as normas básicas da Natureza? Retornando a esse embate entre forças, apresentado logo no início da projeção, Malick aparentemente destrói, com a classe que uma obra voltada para o Divino exige, a ideia de que essas são diametralmente opostas e excludentes. Até mesmo o sr. O’Brien – a Natureza – falha em seguir a filosofia que prega, segundo a qual “não se deve ser íntegro demais”, posto que dedica-se à família e inclina-se para uma fé que sugere afeto, devoção, Graça.
Assim, é compreensível que o mesmo badalar dos sinos seja ouvido em dois momentos, a princípio, tão díspares da narrativa: aquele em que pai e mãe se juntam após o anúncio da morte de seu filho do meio, e outro, quando o planeta é visto, do alto de sua imensidão, recebendo o meteoro que cessa a existência dos dinossauros. Nós não somos iguais aos animais, mas, diante do que Malick e o diretor de fotografia Emmanuel Lubezki nos mostram, é impossível negar que somos tão insignificantes quanto estes e que carregamos em nós tanto Graça quanto Natureza, ainda que em medidas distintas.

A evolução de Jack (e a evolução de Malick)
Após reinventar o planeta, A árvore da vida retorna à família O’Brien e, muito embora haja espaço para momentos dedicados quase que exclusivamente ao pai e à mãe, as atenções se voltam para o irmão mais velho, Jack (Hunter McCracken) – algo evidenciado por sua voz, que ocupa parte significativa da narração, e pela câmera, que segue com precisão todos os movimentos, sempre encarando-o de frente. Não se trata, portanto, de um segmento “menor” da trama. Ao contrário, é aqui que Malick oferece ao espectador os minutos mais sinceros e autobiográficos de toda sua filmografia: também criado no interior do Texas, o cineasta conviveu com o suicídio do irmão mais novo (que guarda diversas semelhanças com R.L., figura doce, própria das artes), ainda em idade jovem.
Acompanhado desde o momento em que seus pais surgem aos beijos na grama verde (ele, fardado; ela, esbanjando pureza), antes mesmo da gravidez, até o ponto em que, anos mais tarde, se descobre mais parecido com a figura paterna do que gostaria, Jack é moldado por suas interações com três figuras básicas – o pai, a mãe e o irmão –, que o levam a alternar entre a serenidade da sra. O’Brien e a rispidez do sr. O’Brien com enorme naturalidade.
Claramente, Jack ressente o tratamento que recebe do pai – um homem que revela, sem arrependimento algum, não ter acompanhado seu nascimento por compromissos com a Marinha, que nele projeta suas maiores frustrações (como o fato de não ter se tornado pianista), que o obriga a chamá-lo de “senhor” a todos os momentos, e cujo modo mais carinhoso de tratá-lo, quando mais jovem, se dá através da alcunha de “diabinho”. Ainda, não é de se espantar que o primeiro contato afetuoso do garoto com o sr. O’Brien (quando seu pé esquerdo aparece por entre as mãos do pai) tenha sua imagem resgatada posteriormente, mas sob uma perspectiva consideravelmente mais negativa (quando a mãe prepara um curativo no mesmo pé, como se o pai não o protegesse do mesmo modo que outrora). Posteriormente, no entanto, o garoto percebe que o sentimento que nutre por ele não é de ódio por este ser quem é, mas de descrença, por ter se tornado tão semelhante.

Vivido com surpreendente maturidade por McCracken, Jack está sempre em conflito consigo mesmo. À medida que cresce, vê seus espaços se ampliarem (se, quando pequeno, não era autorizado a ultrapassar a cerca do vizinho, agora corre livre por toda a vizinhança, na companhia dos amigos – elemento valorizado pela brilhante direção de arte de David Crank) e seus obstáculos se tornarem cada vez maiores (tais como sua experiência inicial relacionada à morte, quando um garoto se afoga ao seu lado, na piscina de um clube; ou a dificuldade em encarar a primeira garota por quem se interessou).
Assim, quando o sr. O’Brien se ausenta de casa, Jack se torna naturalmente mais agressivo, passando a desrespeitar a mãe e a atormentar o irmão mais jovem, antes seu protegido. Incapaz de resolver o conflito em que se encontra – novamente, Graça versus Natureza –, o garoto questiona a própria fé, furioso por ser forçado a crer em um Deus que, além de não atender a seus anseios, o faz passar por tão danosas turbulências. É simbólico que, em determinado ponto, ele peça em uma oração para “ser grato pelas coisas que tem”, provando-se inábil até mesmo em demonstrar gratidão à divindade em que acredita ou deve acreditar. Também é marcante o momento em que, questionando a si mesmo “Por que ele nos machuca?”, somos levados a crer que esse ele a que o garoto se refere é Deus – e não o próprio pai, como afirmará em seguida.
Sustentando-se em uma poderosa performance de Brad Pitt, A árvore da vida chega ao seu melhor momento após o retorno do sr. O’Brien de uma longa viagem de negócios. De maneira quase animalesca, mas ainda pesarosa e melancólica, Jack desafia o pai (“Você gostaria de me matar” e “A casa é sua, você pode me expulsar quando quiser”) e recorre a uma divindade em cuja bondade não mais acredita para deixar de sofrer (“Por favor, Deus, mate-o! Deixe-o ir! Leve-o daqui”).

A relação de instabilidade emocional entre os dois personagens só atinge seu clímax a seguir, quando o pai finalmente liberta seus sentimentos, aprisionados desde o início pelo barulho das aeronaves com que trabalha. Fragilizado, motivado pela perda do emprego que tanto valorizava e realizando uma espécie de confissão ao filho e à esposa, ele busca remediar as cicatrizes do passado – sabendo ser impossível apagá-las –, ao afirmar que a família é tudo o que tem e tudo o que deseja ter — no limite, a família é tudo o que ele fez em vida. Pela primeira vez, O’Brien desvincula-se da ideia de Natureza e se aproxima da Graça – e, pela primeira vez, a câmera de Malick registra sua presença com serenidade, sem a proximidade tensa, temerosa e submissa de outrora. O garoto, no entanto, prova não ter sido capaz de sanar o conflito em que sempre se encontrou (e que virá a se agravar pela vindoura morte do irmão) ao responder ao desabafo do pai com um engasgado “Sou tão mau quanto você”.
Por essa razão, o foco retorna para o tempo presente, quando Jack ainda se digladia com o próprio passado e seu próprio interior. Em uma praia, estão reunidas várias versões de seus familiares e amigos e dele próprio – personagens que, em maior ou menor escala, dependendo apenas das circunstâncias, estiveram presentes em todos os momentos de sua vida. Jack não se tornou este adulto em função apenas da morte do irmão, da presença opressiva do pai ou de sua infância turbulenta. Toda e qualquer experiência por ele vivida é parte fundamental daquilo que se tornou, daquilo que permanecerá: um ser insignificante em meio à imensidão. Bem como todos nós.